Este é um texto para o “Dia da Visibilidade Trans”, 29 de Janeiro. Sou uma pessoa trans não binária, ou seja, não me reconheço em nenhum dos esteriótipos de gênero correntes nos discursos dominantes. Nem homem e nem mulher, ou, como diria minha querida Laerte Coutinho, sou outras palavras, estas não me contemplam.

De início essa pode parecer uma afirmação tresloucada, como não se pode ser homem ou mulher? Que loucura! Mas, um olhar atento, na constituição das culturas humanas, nos faz perceber que, não são todas as culturas que se baseiam na noção binária de gênero, homemXmulher, masculinoXfeminino. A nossa cultura sim, ela se funda nesta divisão, apesar de, ao longo dos séculos ter constituído uma mitologia de seres (não humanos geralmente) dotados de uma não-binariedade, por exemplo, quem já não ouviu dizer que anjos não tem sexo? Ou ainda, na cultural italiana barroca, o entendimento dos “castrati” como sendo, nem homens e nem mulheres?

Nossas narrativas históricas, nossos mitos fundantes,de um tempo a-histórico (como nos diria Judith Butler) revelam a potencialidade da indefinição, e de certa forma, ela é recorrente no nosso discurso, mesmo na fala mais normativa que pudermos pensar,como a de ” almas gêmeas”, não é sobre elas o mito de que os seres humanos haviam sido criados, com um corpo que era ao mesmo tempo masculino e feminino, separado por um castigo dos Deuses?

Pensar o não binário, não é, como muitos sugerem, pensar o impensável, primeiro, porque, nem mesmo é possível usar como argumento contestatório o dimorfismo dos organismos humanos, afinal, existem as pessoas intersexo, ou aquelas que (muito raramente), nascem sem nenhum tipo de órgão sexual. Estas pessoas, ao longo de suas vidas irão identificar-se com um gênero (ou com nenhum deles), de acordo com a percepção que possuem de si e de suas vivências no mundo.

Mas o Gênero, como já o dissemos exaustivamente, não é ” o corpo”, ele é uma interpretação do corpo dada pela cultura, que designa, por relações semióticas arbitrárias, o que é masculino e feminino. Um bebê passa a existir muito antes de ter nascido, ele existe como sujeito de sexo e gênero, a partir do momento em que o ultrassom é feito, e dizem ” é um menino” ou ” é uma menina”, a partir disso, se constrói um mundo de expectativas, e também de imposições, cores, nomes, netos, possível vida escolar. O gênero é pré-discursivo, está dado antes mesmo do nascimento, ele é pressuposto e é performático. Depois de nascer é preciso aprender a ser do gênero que lhe deram: cruzar as pernas, falar mais grosso, não mexer tanto as mãos.

Há um esforço intenso no enquadramento do sujeito em um dos pólos de gênero, além do esforço do enquadramento, entendemos hoje, a fuga deste enquadramento como ” disforia de gênero”, ou seja, o discurso médico-clínico, consegue transformar em patologia, aquilo que é uma questão identitária.

Quando me afirmo como pessoa trans não binária, estou a dizer que nenhum destes ” modos de viver” generificados me contemplam. Posso olhar para um homem e pensar: ” sou igual a ele? ” minha resposta será ” não”, e o mesmo se dá quando olho para uma mulher. Mas essa não é a questão mais importante, certamente não. A questão central é:precisamos ter gênero para nos socializarmos? É realmente necessário estar no mundo a partir de uma intelecção do outro na binariedade?

Não sou daquelas pessoas ingênuas que dizem ” somos apenas humanos”, não, definitivamente não, afinal, quando nos igualamos desta maneira escondemos os profundos abismos que construímos para nos separar, abismos sociais, de classe, de gênero, religiosos, de orientação sexual. Não somos apenas humanos, essa é, quiçá, apenas uma das nossas muitas marcas identitárias.

Sou uma pessoa trans, pois não sou cis, ou seja, não me identifico com o gênero que me foi designado ao nascer,e para o qual fui criada, Considero, neste momento, meu corpo como instrumento de resistência micro-política. Quando saio pelas ruas vestida com roupas lidas como femininas, estou a romper com discursos normativos, quando ( como estou a fazer agora) tomo hormônios femininos, não o faço para ” ser mulher”, mas para apagar as marcas deixadas pela testosterona no meu corpo, para experimentar, do ponto de vista bio-químico, as diferenças entre os organismos. Os hormônios que tomo, estão a fazer ,com que eu tenha seios. Minha meta? Que olhem pra mim e não saibam o que sou.

A modernidade nos trouxe certezas demais. Aprendemos que teremos um ” paraíso” ( seja ele religioso ou um mundo socialista utópico), aprendemos que a ciência poderia nos salvar, aprendemos que as ciências da mente nos protegeriam de nossos monstros, que o dinheiro poria fim a fome. Não deu certo. E a razão é clara, o que há uma imobilidade humana, há, sim, uma multiplicidade. E a experiência de ser homem ou mulher é múltipla.

A filósofa Judith Butler inicia seu livro ” Gender Trouble” com uma pergunta que nos inquieta ainda agora: ” Quem é o sujeito do feminismo?” Que transcendência é essa que o feminismo clássico deu ao conceito de “mulher”? Vivemos todas as mesmas vivências? Certamente não. Uma pessoa simples, que se conduzir a uma reflexão mais profunda encontrará em si, elementos de uma feminilidade e de uma masculinidade, a questão é estar feliz com as normas que nos definem. Eu não me sentia feliz sendo homem, então estou mudando.

Não me sinto feliz em escrever um texto para o dia da ” Visibilidade Trans”, pois a necessidade de um dia de visibilidade supõe 364 outros de invisibilidade. Ser invisível, é não ser vista, é não ser sujeito, é ser abjeto. O monstro que vive nas esquinas a se prostituir, nos hospitais de saúde mental, na televisão como quimera para diversão dos ‘normais’.

A filósofa judia Hannah Arendt, em seu livro ” As origens do totalitarismo” disse em relação aos judeus o seguinte: “O totalitarismo se baseia na solidão, na experiência de não pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e desesperadoras experiências que o ser humano pode ter”. Correndo aqui o risco de transposição teórica sem rigor metodológico, entendo a ” cis-heteronorma” como totalitária, entre outras coisas, porque ela consegue me fazer sentir a dor de não pertencer. E não é não pertencer a uma etnia, ou religião, mas a dor de não pertencer à humanidade.

Sou uma pessoa trans, geralmente me chamam de ” travesti”, alcunha que carrego com orgulho, e que acredito, talvez, seja um ” terceiro gênero” brasileiro, como o são as hijras na Índia.

Vivemos um momento político catastrófico em termos de Direitos Humanos, e sobretudo o que diz respeito às pautas de Gênero e Sexualidade, mas, ainda assim, escrevo com lágrimas e esperança de que não seremos mais tão invisíveis, que teremos voz além daquela dos gemidos da prostituição. Somos sujeitos! E minha luta é para que deixemos de ser abjetos. Sejamos nós trans binários ou não, com passabilidade ou não.

texto por: Texto d@ noss@ colaborad@, Fernando Dantas Vieira. / créditos: site revistaforum